03. O CANDIDATO A COROINHA
(fatos ocorridos entre 1951 e 1952)

          Minha avó, que todos a consideramos como santa, era católica fervorosa e passava as tardes costurando roupas para os pobres. Talvez tenha sido por sua influência que eu me tornei coroinha (auxiliar de padre). Estava bastante interessado e me decidi a procurar ajuda. Primeiro procurei um amigo, que tinha o apelido de Zé Mico e havia sido coroinha, para saber como era esse trabalho e o zé mico me falou maravilhas. Que ele tocava o sino, tomava vinho de padre e que a igreja tinha partes secretas, que poucos conheciam, e onde ele corria e brincava. Pronto, tá resolvido, vou ser coroinha, vai ser muito bom e minha avó vai ficar muito feliz.

          Alguns dias depois procurei o padre Tenysson e falei de minha pretensão. Ele (que devia estar precisando de coroinha) me perguntou se eu sabia bater a Ave Maria no sino. Eu fiquei pasmo por alguns segundos, mas recuperei-me e disse que sim (eu tinha que ser coroinha). O padre então pediu que eu fosse lá em cima e batesse uma Ave Maria para chamar os fiéis para a missa. A torre da matriz de Ipameri tem uns trinta metros de altura, começa-se a subir por uma escada comum até a varanda onde fica o coro, depois sobe-se por uma escada vertical, de madeira, que balança mais conforme você vai subindo. Eu não fazia idéia que era tão difícil, mas precisava continuar. Passei pelos sinos e continuei, movido pela curiosidade, no último andar da torre me deparei com a fantástica máquina do relógio, nunca imaginei que existisse um relógio tão grande (embora o visse de longe todos os dias). Fiquei ali alguns segundos embasbacado com a altíssima tecnologia que gerou aquela máquina e desci um andar para tentar tocar aqueles sinos antigos.

           Eu estava entrando em um mundo novo e fantástico, lugares secretos onde poucas pessoas tinham chegado. Só de pensar nisso quase fiz xixi nas calças de tanta emoção e alegria. O que mais me aguardava naquela trilha medieval, perigosa e oculta que estava revelando-se às minhas impressionadíssimas retinas? Desci um andar, os sinos eram enormes, especialmente o principal, e a vista era simplesmente estonteante, de onde se viam todos os telhados de Ipameri* (Goiás). Engoli em seco e parei por dois minutos para renovar o fôlego e pensar na melhor forma de fazer aquele sino imenso tocar. Logo vi uma corda amarrada no suporte do sino e entendi seu funcionamento. Pendurei-me nesta corda e, com toda a minha força e amor em meu coração, comecei a tocar. Imaginei a música Ave Maria que vovó cantava e toquei o sino no mesmo ritmo. O som e a vibração do sino era incríveis e quase estouravam meus tímpanos, tive vontade de fugir, mas continuei. Ao terminar desci e fui tremendo procurar o padre. Encontrei o padre Tenysson na sacristia, todo paramentado para a missa, ele se voltou para mim sorrindo e falou que foi a Ave Maria mais bonita que já ouvira, que iria me ensinar latim para que eu o auxiliasse na Santa Missa. Saí meio tonto, meio feliz... Que diabo será esse tal de latim?

          Na verdade não foi difícil, aprendi apenas as palavras que deveriam ser pronunciadas na missa e achei que o latim não era tão difícil como podia parecer, quando ouvíamos o padre falar na missa. Fui estudar o latim prá valer no ginásio, ufa! O que eu não sabia era que o trabalho do coroinha começava às cinco horas da manhã, arrumando o vinho, as hóstias e, principalmente, o turíbulo que, quando esticado, ficava quase da minha altura. E este trabalho só terminava depois das dez horas (e eu em jejum!).

          Atualmente o acesso à torre da matriz é fechado por uma porta de ferro com cadeado e os coroínhas batem os sinos a partir do balcão do coro, através de longas cordas que passam por buracos em todos os andares da torre. Por esta alteração podemos concluir que aquela nossa aventura era realmente muito perigosa. Mas quarenta anos depois eu voltei lá, pedi permissão ao novo padre e subi até o topo da torre** para matar a saudade.


* Nota do Autor: Foi desta maravilhosa visão dos telhados de Ipameri que eu tirei o título deste livro.

** Nota do Autor: Por motivo de segurança as aberturas da torre foram fechadas com portas de ferro, mas na minha época podia-se sentar na beirada (que perigo) e apreciar a linda paisagem da minha querida Ipameri.



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